quarta-feira, 6 de maio de 2009

Actus contritionis #1

Fotografias de Nobuyoshi Araki, série "flowers-bondage"

Aparece assim na Wikipedia: "Pornografia é a representação, por quaisquer meios, de cenas ou objectos obscenos destinados a serem apresentados a um público e também expor práticas sexuais diversas, com o fim de instigar a líbido do observador."

Mesmo apresentado assim de forma tão concreta, a pornografia é um conceito muito subjectivo, logo à partida porque todos os conceitos envolvidos na sua definição são igualmente de fronteiras muito ténues e dados a múltiplas interpretações pessoais; O conceito de obscenidade, por exemplo, remete para a falta de decência, para o pudor, e estes para a dignidade e para o respeito de si mesmo e dos outros.

Eu que até me tenho como um gajo assim meio solto e descomplicado, que não se choca com facilidade, sempre achei curiosa a forma como alguns impõem estas divisórias e como algumas pequenas coisas, por vezes sem qualquer importância, metem logo uma beata mais incauta a benzer-se.

E nessa óptica, de colocar as devotas a rezar actos de contrição, resolvi expor aqui algumas dessas insignificâncias que tanto aprecio. A começar por este trecho lindo do Chico Buarque do seu livro Budapeste:

Fotografia de Nobuyoshi Araki

«Kriska se despiu inesperadamente, e eu nunca tinha visto corpo tão branco em minha vida. Era tão branca toda a sua pele que eu não saberia como pegá-la, onde instalar as minhas mãos. Branca, branca, branca, eu dizia, bela, bela, bela, era pobre o meu vocabulário. Depois de contemplá-la um tanto, desejei apenas roçar seus seios, seus pequenos mamilos rosados, mas eu ainda não tinha aprendido a pedir as coisas. Nem ousaria dar um passo sem o seu consentimento, sendo Kriska uma amante da disciplina. Nas primeiras aulas me fazia passar sede, porque eu falava água, água, água, sem acertar a prosódia. Os pães de abóbora, um dia trouxe à sala uma fornada deles, passou-os fumegantes sob o meu nariz e jogou tudo fora, porque eu não soube denominá-los. Mas antes de fixar e de pronunciar direito as palavras de um idioma, é claro que a gente já começa a distingui-las, capta seu sentido: mesa, café, telefone, distraída, amarelo, suspirar, espaguete à bolonhesa, janela, peteca, alegria, um, dois, três, nove, dez, música, vinho, vestido de algodão, cócegas, maluco, e um dia descobri que Kriska gostava de ser beijada no cangote. Aí ela tirou pela cabeça o vestido tipo maria-mijona, não tinha nada por baixo, e fiquei desnorteado com tamanha brancura. Por um segundo imaginei que ela não fosse uma mulher para se tocar aqui ou ali, mas que me desafiasse a tocar de uma só vez a pele inteira. Até receei que naquele segundo ela dissesse: me possui, me faz o amor, me come, me fode, me estraçalha, como será que as húngaras dizem essas coisas? Mas ela ficou quieta, o olhar perdido, não sei se comovida pelo meu olhar passeando no seu corpo, ou pelo meu falar pausado no idioma dela, branca, bela, bela, branca, branca, bela, branca. E eu também me comovia, sabendo que em breve conheceria suas intimidades e, com igual ou maior volúpia, o nome delas.»

6 comentários:

Marycarmen disse...

Eu também tenho uma grande dificuldade em lidar com estes conceitos, tipo: erotismo versus pornografia, relação entre sexualidade e moralidade, relação entre ser pessoa e ser sexual, relação entre dignidade própria e objectificação.
Ui...
Tás tanto tempo sem postar e postas logo uma coisa assim...

Desenvolvam lá que eu já volto a comentar. (ou como diria o Schwarzenegger, "I'll be back...")

Gata2000 disse...

Eu considero bem difícil fazer encaixar ideias em estereótipos, porque o que é pornografia para mim pode não ser para outro. O texto que transcreveste para mim é bonito, apenas bonito, não é erótico, nem obsceno e muito meos pornografico.welcome back!!

Dida Prazeres disse...

onde é que me ajoelho??? hihihihihi


mas sim...é dificil traçar uma linha em determinadas coisas...esta é uma delas...como eu digo, o mundo não é a preto e branco...tem igualmente variados tons de cinzento!!;)

Beijos e bem regressado!!!

Anónimo disse...

Belo texto.

Mais alma que pornografia!

Mais alma que erotismo.

E, com tudo, e com isso, belo.
Muito.

Pedro Ferro disse...
Este comentário foi removido por um gestor do blogue.
amantesmaria disse...

Antes demais obrigado a todas pelos comentários, o tempo tem sido escasso ultimamente para escrever...

Mary, cá te espero!

É verdade, Gata, a cabeça de cada um acaba por ser a que define o que é ou não pornografia... e no caso de sermos gajo isto que acabo de dizer até ganha outra força.

Dida, olha que por aqui quem ajoelha tem que rezar, lol!
O que dizes tem todo o sentido, nem tudo se consegue arrumar inequivocamente na prateleira X ou Y.

Sim, Cris, muito mais alma que pornografia... mas o que não lemos ou vemos o nosso cérebro concluí e é nessa imaginação que podem surgir as partes mais escabrosas e... boas!

Beijinhos