quinta-feira, 2 de abril de 2009

Sonhos fáceis que o corpo satisfeito nos faz chegar

"Dalí a la edad de seis años, cuando creía que era una niña, levantando la piel del agua para ver un perro dormido a la sonbra del Mar", Salvador Dalí


Com a maior das delicadezas fecho a porta atrás de mim. Não a quero acordar, incomodar-lhe o desmaio a que se rendeu ou os sonhos fáceis que o corpo satisfeito lhe faz chegar. Deslizo para fora do quarto em surdina e encerro ali o aroma a sexo que ainda paira no ar.

Começo a gostar desta casa, a dos seus pais, ou dela própria, porque foi cá que cresceu, já não lhe vejo só paredes e móveis e livros esquecidos nas estantes.

Já me contam, os pormenores, que o tempo lhe passou por cima.

A carpete, pisada, íntima, cansada, já me confessa como antes abafou pés descalços de meninas em corrida. Que houve ali um pai que chamou e infâncias que como as outras se desenharam em passos apressados.

Recados esquecidos (?), espalhados num acaso que só a realidade consegue reproduzir, mantêm presente o rigor de outrora de uma mãe carinhosa. Há livros marcados e tacos soltos, cheiro a despensa e torneiras a pingar, já não é só paredes… mas, agora, que vou às cegas no corredor à procura do interruptor da casa de banho, era o que me convinha. Com o rabo nu, perseguido pela ponta húmida do focinho da cadela curiosa, apresso-me contra a mobília e derrubo as molduras das fotografias antigas de família. Aos apalpões, encontro finalmente o botão que procuro, enxoto a bicha, carinhoso, e refugio-me dela fechando a porta.

De mãos apoiadas na bancada do lavatório respiro para o espelho. Olho-me nos olhos e tento-me situar naquela realidade emprestada. Mantenho o olhar fixo (e por necessidade o respirar), desafio-o, questiono-lhe a integridade e vejo se por algum momento desvia o olhar – não desvia, sacana, assume mesmo que tudo isto lhe é uma possibilidade!

Ao lado do lavatório repousa um pequeno galho cortado com uma flor meio murcha na ponta. Reconheço-o! Há duas ou três semanas atrás, enquanto esperava por ela, num dia em que lhe sabia terem as coisas corrido mal, quebrei-o de um arbusto na rua para lho oferecer.

11 comentários:

Marycarmen disse...

A realidade tem muitas formas de nos fazer redescobrir, não é?

Walking on the edge, sometimes we find that the edge suits us. But for how long will it suit us? And how can we ever come back? Who is the one that comes back?

Quem somos nós afinal? Qual é a nossa gama de possibilidades de ser? Como é que se abriga uma alma tão grande, um ser tão extenso, em apenas um corpo e apenas uma lifeline?

;-)

Gata2000 disse...

E assim se constroi uma vida, uma realidade, com pequens galhos de flores murchas na ponta, com risos de crianças, livros nas estantes.
Respira fundo, vais sentir-te bem melhor!
Miaus

amantesmaria disse...

É verdade Mary,

quando nos aventuramos para lá dos limites que anteriormente impusemos à vida, quando experimentamos outras formas alternativas de a trilhar, é normal que voltemos diferentes.

Não necessariamente maiores ou melhores... talvez apenas mais tristes!

Pena não podermos viver numa, 100 vidas diferentes!

Beijinhos e obrigado pelo comentário tão perspicaz!

marycarmen disse...

Com mais consciência de que viver é escolher, e que a ausência de escolha é ela própria uma escolha, ainda que irrefletida.

Ontem de noite pensei na insustentável leveza do ser. Em Inglês é "The unberable lightness of being". É uma expressão tão ampla na sua lucidez, não é?

Cristiana disse...

Realidade emprestada ... ou dada por momentos ...

amantesmaria disse...

Cristiana,

acredito que para te responder de forma inequívoca e esclarecedora, sendo tu uma mulher de códigos, decretos e portarias, fosse fundamental tratar os conceitos que vieste contrapor.

Mas tratando-se aqui de prosa e não de leis, o cariz pessoal das palavras escolhidas dá-lhe um peso subjectivo que n é conveniente a quem deseja total clareza.

Utilizei deliberadamente a palavra "emprestada" porque aquela não era de facto a minha realidade. Não era aquele o meu espaço, nem aquela relação era a minha, apenas me foi confiada temporariamente!

Sinceramente não vejo muita diferença entre "emprestar" ou "dar por momentos", mas a tua pergunta surgiu certamente por lhe vislumbrares a diferença suficiente para n te ser claro... mas podes sempre perguntar de outra forma ou dizer-me que distância vês tu entre termos.

Beijinhos
e desculpa lá a toada técnica, lol!

Afrodite disse...

Hmmm gostei muito do que li, até porque tiveste a capacidade de me transportar até ao local, quase vi as molduras, quase senti a cadela perto de mim :). Sensações agradáveis. Obrigada!

Abreijinhos e bom fim de semana

amantesmaria disse...

Lol, digamos que a ponta do focinho de uma cadela no nosso rabo despido pode ser menos... agradavelzinho, digamos assim!

Obrigado eu pela tua visita!
Abralhos! ;)

Cristiana disse...

Sim, talvez tenha caído numa interpretação que me remeteu, inconscientemente, ao conceito jurídico ... o empréstimo como acto juridico é voluntário e bilateral. A realidade emprestada como me foi apresentada no texto é um pensamento que a uma só pessoa pertence ... e pareceu-me uma consequência um suspiro um desabafo, muito intimo!

Dida Prazeres disse...

As marcas que nós deixamos no nosso mundo...são muitas vezes pequenos pedaços de nós...uma espécie de uma segunda memória...
gostei...muito...;)

Beijos


(abralhos?! loool porque nunca me lembrei dessa!!! :P)

Anónimo disse...

Ontem ainda te perguntei como é que numa dessas realidades emprestadas, quando acordas a meio da noite, te consegues situar. Se reconheces a casa, identificas a pessoa...
É que a mim acontece-me uma coisa bastante ridícula. Quando acordo a meio da noite, principalmente se desperto abruptamente de um sono profundo, por vezes não reconheço o meu rapaz, assusto-me imenso e sou um bocado agressiva com ele.
Ora se isto me acontece com um fulano com quem durmo há 16 anos e que tem sido sempre o mesmo, por vezes não sei como ficaria a minha pobre cabeça se acordasse a meio da noite e estivesse mesmo lá outro que não este.
Sabias sempre se era a Maria ou a Jaquina, a que estavas a abraçar? Nunca lhes estranhaste a forma do rabo, o comprimento do cabelo ou o cheiro, assim a meio da noite?

Isso a mim dava-me um desnorteio dos diabos...

Marycarmen